Voyeur



CONTO DE TERROR sobre culpa, obsessão e negligencia.
(Voyeur é um termo francês para pessoas que sentem prazer ao verem terceiros em relações amorosas).

FOTOS DE CAPA da autoria de Faisal Rahman, Timi Keszthelyi.



             

             Voyeur


"A perversidade é um dos impulsos primitivos do coração humano"

- Edgar Alan Poe.


    Fazia algum tempo que a noite havia chegado, e com ela uma brisa quase inexistente. Não aplacava o abafado de maio; a pele se tornava grudenta com o suor e não havia nenhuma possibilidade de se sentir limpo. O ar cheirava a gordura e era extremamente quente no bairro de David.
    No meio daquele mato ele colocara todas as chaves juntas, enfileiradas para que ficasse fácil de distingui-las. No colo ele segurava o pneu traseiro da bicicleta, os dedos enganchados no raio como se estivessem apoiados. Escorria vomito das juntas até o chão e a sua cabeça vagueava como a de alguém claramente bêbado. Toda vez que era levado a desmaiar, seus dedos, como forquilhas da razão, apertavam os raios do aro e David se inclinava sobre a bicicleta, querendo desistir de se manter acordado e consciente. O medo das ruas era o único elemento que botava algum juízo nele; sentia-se atolado numa espécie de trincheira, sabendo que não podia apagar e sem forças para sair.
    De repente um som, que aos poucos foi aumentando e fez com que a vida dentro dele desse maiores sinais de reconhecimento: uma sirene.
    Vinha ao seu encontro, ele sabia. Por mais que procurasse evitar o confronto, fugir e se esconder, não era capaz.
    Em vez disso, procurou manter a calma. A cabeça doía e uma tontura muito forte o obrigava a ficar quieto, imóvel, apenas à espreita dos passos que se aproximavam. David não pretendia dar explicações e nem eles, os oficiais, pareciam interessados nele.
    Sentiu apenas que o arrastavam para dentro da viatura, de modo que sua visão estava limitada somente ao que via para além das pálpebras dormentes e do vidro reforçado. Finalmente ele poderia descansar.
    Estirado no banco traseiro, as luzes opacas dos postes iluminavam seu pálido semblante e as vozes que ouvia eram meras vozes sem importância. Quando voltou a sentir que o arrastavam, estava menos acordado, contudo ele pôde ouvir uma terceira voz a sós com ele, tentando se comunicar, sem sucesso.  
    — Que diabo eu faço contigo? — Perguntou-se seu irmão, Douglas, se afastando daquela visão desgraçada.
    Ele agora se encontrava confortável num estofado velho, às escuras na sala de visitas da casa dos próprios pais, já falecidos. A única claridade provinha da janela a sua frente, aberta para refrescar. David a muito se deixara vencer. Os passos retornaram, fazendo novo barulho, e uma sacudidela o fez reagir de acordo, encolhendo-se a fim de permanecer num torpor.
    — Vamos, acorda — disse o irmão, sem tirar as mãos dele. — Você vai me ouvir. Eu tô cansado disso.
    — Me deixa dormir, tô bêbado… — Ele balbuciou em resposta, implorando para que o deixasse.
    — Não tá tão bêbado assim — rebateu o outro, arrancando David do sofá com força surpreendente. — Me ajuda cara, porra eu já liguei o chuveiro. 
    Cambaleando, ele atendeu ao seu pedido e ambos prosseguiram semelhante a um siamês disforme que se arrasta num misto de culpa e necessidade. David só acordou de vez ao sentir que lhe escorria pelo corpo água quente e as mãos do irmão que insistiam em mantê-lo desperto.
    Ele ofegou, fustigado pelo tratamento, e parecia querer recuar, porém era trazido novamente para debaixo do chuveiro.
    Da porta aberta às costas de Douglas, uma figura feminina desejava saber o que se sucedia; ela acordara no momento em que o marido a deixara e somente agora resolvera levantar da cama.
    — Tá tudo bem, não vou demorar… — Disse-lhe o marido, ocupado em tratar do irmão. Ele era obrigado a segurá-lo com força até julgar que estivesse sóbrio o bastante. Contudo David era teimoso, e dava trabalho.
    — Que inferno! Por que você tem que ser assim? Cacete eu me esforço pra te ajudar e você nada! Até parece que gosta de rastejar como um verme, olha eu… Eu não vou continuar nessa pra sempre, então te lava que eu te espero na cozinha. Nem pensa que tu vai se safar, sabe que não vai. Então vê se coopera comigo, por favor.
    Pela segunda vez ele fora deixado sozinho, confiante de que faria a coisa certa, e de fato David àquela altura despertara do torpor e era permitido raciocinar com um mínimo de clareza. Por que eu dou tanto trabalho? Ele se perguntava, nas palavras do irmão. A água quente era misericordiosa, e ele se lavou de porta aberta, sem pudor algum, até desligá-la.
    Douglas estivera esperando na cozinha, observava o copo de cerveja disposto na mesa a sua frente pouco antes de tomá-lo. Suspirava vez ou outra até que finalmente David deu as caras, com uma aparência um pouco melhor. 
    — Pode sentar, se quiser — disse Douglas, procurando ser paciente com ele. 
    Acanhado como se encontrava, David apenas assentiu e se sentou de frente para o irmão, esperando para responder às suas perguntas. Na verdade estava com um péssimo aspecto, sabia disso também.
    — Sabe o que as pessoas me dizem, de vez em quando? — Douglas perguntou, fitando-o. — Seria bom pra você passar um tempo numa clínica, e que eu deveria fazer isso por você. O que acha?
    — Não acho nada.
    Douglas ficou a encará-lo, desencanou e voltou a encher o seu copo, pouco convencido de qualquer coisa. Estava cansado, largou o copo na pia e ia se dirigindo para o quarto, quando parou de repente.
    — Tem sopa na geladeira e suco também. Só fica por aqui, por favor. Amanhã a gente conversa sobre tudo isso.
    — Eu não consigo dormir — disse David.
    — Tá, eu devo ter alguns comprimidos… Não vou te dar muito, senão você vai dormir igual uma pedra.
    — Acho que seria melhor eu contar logo tudo o que aconteceu.
    Douglas se voltou para ele como se incerto, discutindo consigo brevemente. Uma parte sua não queria ouvir sequer outra palavra, contudo ele tinha a impressão de que alguma coisa incerta pairava no ar.
    Ele permaneceu assim por algum tempo, até se deixar vencer, apegando-se as suas suspeitas. Olhou para David com um olhar estranho e então encheu mais dois copos.
    — Deixa eu só te perguntar: por acaso isso tem a ver com aquilo? — Douglas perguntou, já esperando pela responda.
    — Ah, tem… — David sorriu, bebendo para limpar a garganta — Deus… Se alguma vez não tivesse a ver.
    — Muito bem, comece então. Vou te ouvir dessa vez.
    — Acontece foi um pouco diferente na verdade — David prosseguiu, procurando ficar mais à vontade. — Tu sabe o quanto eu tento segurar isso comigo. Meses assim, sabe? Às vezes até parece que some. 
    “Mas então, eu tinha conhecido essa moça da firma, Adriana, e fomos se dando bem, conversávamos sobre todo o tipo de coisa, difícil de acontecer. Um dia, estávamos só de bobeira com uns colegas e ela acabou soltando essa: ‘eu e meu namorado, de vez em quando, gostamos de fazer coisas estranhas’. E foi isso, nada demais. O problema é que atiçou minha curiosidade, entende? Quando eu não estava fazendo nada, começava a pensar nisso, e aí aquela coisa começou a ficar mais forte conforme eu pensava. É porque ela não parece ser… Quer dizer, quando você olha pra Adriana é uma pessoa normal, como qualquer outra. Parecia não fazer sentido ficar pensando nessas coisas, mas esse é o problema, não tem a ver com ser necessariamente racional. Tudo o que eu quero é ver. 
    “Nisso eu comecei a me aproximar, e mentia pra mim mesmo que era só porque estávamos conversando, nada demais. Eu queria saber dela, o que ela fazia quando estava sozinha. Quando não conversávamos, eu ansiava por vê-la, parecia até paixão; mas eu sabia que não era, e tinha me convencido a parar o quanto antes…
    “Uma hora ela suspeitaria, pensava, mas não foi o que aconteceu: Adriana foi ficando mais confortável comigo, e essa vontade que eu tinha de vê-los, ela e o namorado, fazendo coisas estranhas, pulava do meu peito.
    “Daí pra frente eu só tinha um objetivo. Pensei e fiquei pensando em mil maneiras de como fazer isso. Havia cogitado a ideia de acompanhá-la casualmente até em casa ou pela rua, mas não existiam maneiras de fazer isso sem motivo, a menos que eu me mudasse pra lá, então resolvi segui-la a partir de onde o ônibus largava Adriana e ela continuava a pé. Conforme prosseguíamos minha ânsia aumentava, e o risco que eu corria de ser avistado me deixava igualmente excitado.
    “Me limitei a observá-la da calçada. Não podia arriscar uma visita sem saber o que fosse rolar… Contudo uma câmera não adiantaria e nem nada do gênero; eu tinha que estar lá para ver, embora não soubesse como. Isso era o que mais me aborrecia. 
    “Estava quase enlouquecendo de verdade quando ouvi por acaso, na firma, duas moças fofocando sobre ela e o namorado terem brigado, e que ela deveria largar o relacionamento porque não era a primeira vez que isso acontecia. Aproveitei e fui falar com Adriana, não é algo que eu faria, claro, mas àquela altura eu devia estar desesperado. Confiei na suposta amizade que tínhamos e esperei por uma oportunidade de abordar a fofoca que ouvira por acaso. Ela ficou sem saber o que dizer, e falei pra ela tudo o que precisava no intuito de deixá-la mais à vontade. Eu não estava curioso, mas preocupado, era o que ela ouvia de mim. Adriana parecia cada vez mais tensa, mas acabou cedendo e comentou sobre suas discussões com o namorado.
    “Num determinado momento ela chegou a me dizer que tentaria conversar com ele naquela mesma noite, na intenção de reconquistá-lo. E nesse ponto algo dentro de mim estalou, eu não sabia o que era, mas agora acho que estava excitado com as possibilidades. Sem me dar conta, já estava tudo planejado, um segundo eu fizera isso, é aquela nossa voz que cede às tentações na medida em que elas vão aparecendo e nos convence que queremos, que precisamos disso só pra relaxar. E aí cedemos.
    “Eu fizera tudo como antes. Tomei cuidado e não chamei atenção. Minha ideia era deixar Adriana ficar à vontade depois que chegasse do trabalho, abrir as janelas e então aguardar. Supus que em alguma hora ela deveria tomar banho, e foi imediatamente após o café. Entrei pela janela da cozinha sem fazer barulho, e imediatamente saí em busca de um canto que atendesse as minhas necessidades; em momento algum eu pensei em roubar ou bisbilhotar, isso não me interessava. Rastejei até o quarto e me escondi no guarda-roupas em frente a cama, analisando minha situação. 
    “Esperei e esperei, até que me dei conta e saí às pressas. Ela usaria o guarda-roupa, é obvio, assim que voltasse do banheiro. Isso serve pra mostrar que eu estava realmente nervoso. Havia jurado que nunca mais faria isso…
    “Resolvi me ocultar debaixo da cama, de olho em qualquer sapato que pudesse surgir e do qual ela pudesse precisar. Nisso eu reparei, de repente: não vira nenhuma roupa de homem no guarda-roupa dela, e quando Adriana apareceu no quarto fiquei à espreita, suspeitando de alguma coisa que pudesse estar errada. Eu a ouvi falando sozinha, mas nada relevante. Ela fez algumas ligações que eu não pude ouvir, e de noite eu me encontrava sozinho no quarto. Cheguei a pensar que ela pudesse ter saído, mas tudo indicava o contrário. 
    “Aproveitei e retornei ao guarda-roupa, receando não ter uma próxima oportunidade. Adriana aparecia algumas vezes no quarto, dava para ouvi-la, suspirando e falando sozinha. Estava nervosa, uma baita ironia pra ambos. 
    “Não sei quanto tempo se passou desde que estive lá, cada minuto parecia durar uma eternidade e eu estava ansioso no meu esconderijo. Tudo havia sido planejado e executado como tinha de ser, e de repente os detalhes que antes eu buscava dela não importavam mais, eu mal me lembrava das palavras. Adriana era ou então se tornara uma espécie de veículo para as minhas fantasias, mas eu sei que não poderia ser outra senão ela a fazer isso. Meu peito ressoava as batidas e meu sistema nervoso concluía a obra.
    “Tentei me acalmar e foi quando pude ouvi-la novamente, não estava sozinha. Ainda assim a ideia de um namorado já não parecia fazer sentido, e nisso minha curiosidade foi tão forte que quase deixei o guarda-roupa para trás numa tentativa de descobrir o que acontecia. Mas fiz bem em esperar. Eles chegaram finalmente ao quarto e me mantive imóvel — mal respirava —, ouvindo sua conversa. Definitivamente não era conversa de casal, mas eles se conheciam, e Adriana começou a dizer coisas carinhosas de uma maneira sutil. Assim foi indo, e eu decidi abrir uma fresta pela qual entrevi um homem alto e bem constituído; pensei comigo que ela o havia contratado, e de repente me dei conta de que boa parte das coisas que ela me contou não era verdade ou então apenas o contexto fosse outro. Eu estava agora penetrando mais fundo na vida dela do que achava de princípio.
    “Eles começaram devagar, sem pressa, embora algo ainda estivesse errado. Parecia velado, como parte de uma cerimônia, eu não entendia nada. Minha curiosidade era maior do que meu desejo de vê-los, e procurava me concentrar pra tentar descobrir. Seus corpos aos poucos ficavam mais agitados, como se uma vontade maior, até mais violenta, tomasse conta deles. E foi quando eu entendi. O sexo era apenas uma parte daquilo.
    “Ele a subjugou e começou a bater nela. Eram golpes precisos, ritmados; ele sempre dava a Adriana alguns instantes pra deixá-la sentir e então de novo, mais forte. Ela suspirava e meio que chorava junto, não tinha certeza do que era aquilo, só sei que eu também passei a me envolver, de certa forma.
    “Era libertador… Digo, ninguém veria isso, entende? Ninguém viria atrás de nós quando tudo acabasse, muito menos saberiam. Fiquei pensando no prazer que Adriana tinha em mentir para as amigas no trabalho, sabendo da verdade. Não imaginariam isso vindo dela. Eu mesmo fiquei surpreso quando me dei conta, estava mais preocupado com a minha situação, mas depois daquilo eu me deixei levar. Se me vissem, já não era mais um problema, e fui sentindo essa sensação de que apenas ver não era o bastante.
    “Vou te poupar dos detalhes. Eles estavam exaustos quando terminaram. Adriana, ela estava toda vermelha… A sua imagem adormecida na cama, a pouca luz que vinha duma fresta no banheiro e a ausência do sujeito que eu vira, tudo isso deixava meu caminho livre. Planejado e executado. Eu me sentia nas nuvens, satisfeito comigo mesmo, como se todo o poder do mundo estivesse na ponta dos meus dedos.
    “Calmamente eu deixei meu esconderijo e me posicionei de modo a poder olhá-la das sombras. Não sabia muito bem o que sentir. Pensava em me aproximar, mas sabia que era má ideia, contudo não resisti contra a vontade de beijá-la de leve, pra não acordar.
    “Inclinado sobre a cama e o seu corpo, sentia o calor que chegava até mim, e de repente Adriana reagiu à minha presença, agitando-se levemente para o meu lado, enquanto eu recuava com a mesma naturalidade. Seus olhos semicerrados encontraram os meus e ela estendeu os braços na minha direção.
    “Imediatamente achei que ela me reconhecera, mas não era isso. Adriana sorria, embalada pelo sono e a exaustão, quase que semiconsciente, e decerto via em mim seu companheiro. Quando a ficha caiu, tomei suas mãos nas minhas na intenção de aninhá-las, mas Adriana me levou direto ao seu pescoço: ela queria continuar o que supostamente houvera terminado.
    “Honestamente não sei o que deu em mim naquela hora. Não sabia o que fazer, e tinha medo de que ela suspeitasse caso eu não agisse de acordo. Mas eu realmente não sabia o que fazer… Fui obrigado a satisfazer seu desejo. Tenho vergonha de admitir que me excitava com aquilo, mas apenas por ser algo novo para mim. Eu não sou dessas coisas, embora tenha me deixado levar, como disse. Foi Adriana quem fez aquilo pular do meu peito, a sua maneira, e seu prazer me contagiava conforme eu executava o ato.
    “É horrível ter o fio da vida nas mãos ao mesmo tempo em que seu próprio gozo não te permite raciocinar com clareza. Agora só consigo me odiar pelo que fiz e por não ter parado antes… 
    “Não sei dizer nem a hora em que aconteceu; não consigo me lembrar. Só sei que entrei em pânico. Tentei reanimá-la, sacudindo seu corpo. Dei alguns tapas nela pra ver se acordava. Nada.
    “Permaneci algum tempo ao seu lado. Estava com a cabeça por todo canto, mas tinha que pensar no que fazer e agir depressa. No começo achei que seria bom esperar pela volta do sujeito que eu havia visto, contudo os minutos pareciam horas e o barulho do chuveiro me dava nos nervos. Caí em mim e deixei seu quarto o mais rápido possível.
    “Não podia me dar ao luxo de ceder à culpa logo de cara, fugi sem saber em que mundo eu estava e somente depois de alcançar a rua que tudo voltou a parecer como antes. Procurei evitar as pessoas porque me achava nervoso demais, qualquer um que me olhasse nos olhos veria isso. Depois eu só entrei de novo no pânico e na culpa. 
    “Soube que a polícia chegara até a casa dela minutos após eu sair, fiquei imaginando se algum vizinho me avistara ou mesmo se ele tivesse chamado ajuda. Pensei em mil coisas diferentes até me acalmar pra valer.
    “Tinha vezes em que eu sabia que seria pego. Dormindo, podre de bêbado e apagado em algum canto, eles me achariam. Cheguei a faltar no trabalho algumas vezes, certo de que esperariam por mim lá. Mas os dias só viravam e eu via as mesmas pessoas saindo de casa, conversando as mesmas merdas de sempre… Eu não acho que devo aceitar o fato de que absolutamente nada vai acontecer comigo. Meus últimos dias têm sido uma porcaria de lá pra cá, e eu tenho medo não da justiça ou do castigo, mas de não haver nada, nenhuma reação do mundo àquilo que aconteceu. Mas eu imagino o porquê disso: era um segredo, eu estar lá. Ninguém tinha como saber.
    “E agora eu tô aqui. Pode fazer o que for fazer… Acho que vai me prender, não vai? Talvez eu precise disso. Alguma coisa tem que acontecer comigo”. 
    Diante da própria sentença dada pelo irmão, Douglas refletia, olhando para ele como alguém que partilhava do peso das palavras. Contudo era mais resiliente, servindo outro copo de cerveja.
    — Você é meu irmão — disse, distraído na tarefa — e eu sou aposentado.
    — Não respondeu a minha pergunta — David devolveu, imóvel como estava. 
    Uma expressão pertinente assomava-se às suas feições, e ele ficou a observar Douglas tomar sua cerveja com impaciência.
    — Só diz alguma coisa.
    — Eu já disse — Douglas respondeu. — Você é meu irmão, e eu sou aposentado. Se quiser, vá até a delegacia. Não me importa nada disso que você tá passando. Por acaso eu tenho cara de palhaço?
    — É que você é meu irmão e…
    — E o que? Vou te oferecer alguma proteção? Porra, David! Eu sabia que isso ia vir, eu tinha certeza, parece até mentira, mas eu sabia —, Douglas assumiu gestos agressivos e sua voz não parava. — Por acaso você sabe quem estava com Adriana naquela noite? É claro que não, pois eu te digo: um vagabundo que vivia nos dando trabalho e que não conseguia ficar longe da cadeia, era só questão de tempo até ele voltar. Os rapazes e eu até comemoramos.
    Ele virou mais um gole, e a expectativa recaiu sobre David, pego de surpresa pela informação. A este bastou o mesmo caminho. 
    — Tá e quanto ao que eu fiz? Que merda, vai ficar assim?
    — Tu não fez nada. Está alucinando — Douglas disse, deixando a mesa em busca de algo. — O idiota confessou o crime. Aqui, pode ler, satisfeito? 
    David recebeu de suas mãos o tabloide e leu a notícia com atenção; a cada palavra suas memórias se reavivavam e ele parou, convencido de que seu nome não se encontrava naquelas páginas. 
    — Então ele realmente ligou pra polícia…
    — Não ligou. Receberam uma chamada anônima, mas não era dos vizinhos; provavelmente algum conhecido.
    — Será que havia outra pessoa naquela noite? — David perguntou, o olhar perdido numa conjectura breve.
    — Se você tivesse estado lá de verdade ou se encaixasse na história eles já teriam te pegado. É só outra alucinação…
    — E se você tivesse me acobertado? — David quis saber, fitando o irmão como que convencido da questão. — Você me acobertou, e deixou ele voltar pra cadeia mesmo assim. É o único modo de eu ter me livrado do que fiz. 
    — David, qual a dificuldade de entender? Não é capaz desse tipo de coisa? Você não conseguiu nem dar cabo do gato da dona Eva quando ela pediu. Era o único da escola que não roubava balas da venda, e lembra daquela vez debaixo da ponte, com a Júlia e a Sara? Todos te olhando e você nada! Demorou pra virar homem… Se mataria, mas não isso.
    — … 
    Douglas mantinha-se estendido na cadeira, olhando para o copo de espuma que restara. David o encarava sóbrio.
    — Ah vai se foder! — Disse David, levantando de um pulo. — Me trata como se eu fosse aberração, como se tu não tivesse teus problemas. Te ajudei sempre que pude, mas foda-se! Vou direto pra delegacia, vou contar tudo e dizer a eles que você fez minha cabeça pra não ir; que ia passar pano numa boa pra tudo isso!
    Ele ia falando enquanto saía, batendo a porta atrás de si. 
    Douglas se mantinha quieto, e lentamente deslizou da mesa como se estivesse num passeio às escuras, sem consciência de nada. Apagou todas as luzes da casa e foi para a cama. No caminho, esbarrou numa cadeira, teve vontade de jogá-la contra a parede, mas procurou se acalmar. David saíra, graças a Deus. 
    Ele se jogou ao lado da esposa e ela esperou alguns instantes antes de saber o que havia acontecido. Ouvira David batendo a porta, será que estava tudo bem?  
    — Ele me disse que fez uma coisa, mas eu sei que não fez — suspirou Douglas, pela escuridão do quarto. — Amanhã vou interná-lo numa clínica. Caso encerrado.

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